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quinta-feira, 19 de maio de 2016

Memórias A.ruralidades




Memórias de um tempo, bem passado A.ruralidades mais que um grupo, uma paixão bem conseguida .
Memórias :

                     Vou fazer contigo o que a Primavera faz com as cerejeiras .
                           "Pablo Neruda "



Até onde os dedos tocam o quente 
do barro a mão sabe 
antes de saber. 
É um saber mais vivo, um saber 
de ave: águia cegonha falcão,
animais quase no fim
como o lume destes dias.
Testemunhar a favor do lince
é nossa obrigação.
Por ser azul.
Eugénio de Andrade




     Quando as pedras choram,as gentes desviam o olhar ,o Sol esse ,continua a brilhar !
Isna de Oleiros



Orgulho, vaidade, despeito, rancor, tudo passa, se verdadeiramente o homem tem dentro de si um autêntico sonho de amor. Essas pequenas misérias são fatais apenas no começo, na puberdade, quando se olha uma janela e se desflora quem está lá dentro. Depois, não. Depois, sofre-se é pelo homem, é pela estupidez colectiva, é por não se poder continuar alegremente num mundo povoado, e se desejar um deserto de asceta. O ascetismo é a desumanização, é o adeus à vida, e é duro ser uma espécie de fantasma da cultura cercado de areias.
Miguel Torga, in "Diário (1948)"



Querem uma Luz Melhor que a do Sol!
AH! QUEREM uma luz melhor que
a do Sol! 
Querem prados mais verdes do que estes!
Querem flores mais belas do que estas
que vejo!
A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.
Mas, se acaso me descontentam,
O que quero é um sol mais sol
que o Sol,
O que quero é prados mais prados
que estes prados,
O que quero é flores mais estas flores
que estas flores -
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa


Um dia triste 
Uma vida baça
Um caminho que se fecha 
Uma árvore caída 
Uma luz que apaga 
Um brilho que fica nos meus olhos
Um dia triste
Adeus minha mãe .

Não há Nada que Resista ao Tempo Não há nada que resista ao tempo. Como uma grande duna que se vai formando grão a grão, o esquecimento cobre tudo. Ainda há dias pensava nisto a propósito de não sei que afecto. Nisto de duas pessoas julgarem que se amam tresloucadamente, de não terem mutuamente no corpo e no pensamento senão a imagem do outro, e daí a meia dúzia de anos não se lembrarem sequer de que tal amor existiu, cruzarem-se numa rua sem qualquer estremecimento, como dois desconhecidos.
Essa certeza, hoje então, radicou-se ainda mais em mim.
Fui ver a casa onde passei um dos anos cruciais da minha vida de menino. E nem as portas, nem as janelas, nem o panorama em frente me disseram nada. Tinha cá dentro, é certo, uma nebulosa sentimental de tudo aquilo. Mas o concreto, o real, o número de degraus da escada, a cara da senhoria, a significação terrena de tudo aquilo, desaparecera.
Miguel Torga, in "Diário (1940)"

Pelo sonho é que vamos
Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.
- Partimos. Vamos. Somos.


Chegamos? Não chegamos?
Basta a fé no que temos.
Chegamos? Não chegamos?
(Sebastião da Gama)
Vamos continuar !
Bem hajam 
Carlos Fernandes

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Vinho de Talha



Considerada em risco de extinção, a produção de vinho da talha tem resistido no Alentejo. A técnica herdada dos romanos caracteriza-se pela simplicidade de processos.

A imagem cativa pela simplicidade. Ao longo do balcão de
mármore humedecido pelas pingas que caem, alinham-se homens meia-idade de boina na cabeça, um ou outro de fato-de-macaco. Todos têm à frente uma peça de fruta sobre um lenço de pano e o canivete ao lado. Peras, "pêros", pêssegos ou marmelos fazem a merenda tradicional que, ao fim da manhã de um dia de semana, vai sendo ingerida com parcimónia, acompanhada por copinhos de vinho branco servidos a bom ritmo. "Se não pedirem tinto, sirvo sempre branco. Isto é uma terra de brancos", explica António Francisco, dono, juntamente com a mulher Maria Júlia, da Taberna "O Arco". Fica no centro de Vila de Frades, freguesia situada às portas da Vidigueira, conhecida por ser o berço da casta Antão Vaz. Faltam poucos dias para a chegada do vinho novo, aquele que todos querem provar. E o que eles desejam está lá ao fundo do estabelecimento, junto à parede: três enormes talhas de barro, duas contendo vinho branco e outra vinho tinto, feitos ali mesmo.

Na auto denominada Capital do Vinho da Talha, é assim, todos os anos, por esta altura - tal como sucede um pouco por todo o Alentejo, com especial relevo nas sub-regiões de Borba, Reguengos de Monsaraz, Vidigueira e Granja. A feitura de vinho por processos artesanais, recorrendo à utilização de grandes vasilhas de barro, uma técnica herdada do período romano, subsiste, apesar de ter caído em desuso. Ao contrário da moderna produção enológica, assente em alta mecanização e no uso frequente de substâncias químicas que dão a segurança e a homogeneidade que o vinho engarrafado em grandes quantidades requer, este método arcaico de vinificação caracteriza-se por uma enorme simplicidade. Está ao alcance de quase todos saber fazê-lo, sendo esta considerada a origem do genuíno "vinho caseiro". Não espanta, por isso, que muitos dos clientes da taberna "O Arco" sejam também eles produtores. Na verdade, é uma prática que até já foi muito mais difundida, mas que se foi perdendo, tal como sucedeu com a feitura caseira do pão, por exemplo.

Como em  muitas outras regiões agrícolas da Europa meridional, noutros tempos, rara era a casa de agricultor que não tivesse produção vinícola própria. Mas, antes dos recursos trazidos pela evolução tecnológica, nada era garantido. "O processo é manual e cheio de riscos", podendo ficar tudo perdido, se não se tiverem os necessários cuidados, explica José Miguel Almeida, secretário-geral da Vitifrades, associação de desenvolvimento local surgida em 1998 e dedicada à promoção e valorização do vinho da talha. Reúne cerca de uma centena de associados dos municípios da Vidigueira, Cuba e Alvito, sendo metade deles de Vila de Frades. Os seus principais objectivos são o aumento da notoriedade desta prática enológica e a melhoria constante da qualidade do vinho assim produzido. Para isso muito tem contribuído o concurso que organiza, todos os anos, e distingue a melhor produção. Acontece durante as Festas Báquicas Vitifrades - este ano, na sua 14ª edição, realizam-se entre 9 e 11 de Dezembro.

O vinho é chamado da talha por, justamente, ser feito nesse recipiente de barro. A olaria foi trabalhada com especial sofisticação pelos romanos, sendo disso exemplo os vestígios encontrados nas vizinhas ruínas de São Cucufate. E isto terá especial importância no decurso do processo de vinificação, por o barro ser um material poroso e assim permitir uma microxigenação no interior da vasilha - que é besuntada previamente com pez, uma resina natural, a fim de evitar a oxigenação excessiva. "Existe uma grande possibilidade de se realizarem trocas gasosas através das paredes de barro da talha, o que beneficia o vinho tinto", explica José Miguel Almeida, salientando, porém, que os procedimentos são iguais para brancos e tintos. O dado mais importante, e sempre sublinhado por quem está ligado à produção, é mesmo o facto de nela não se usarem produtos químicos. "Faz-se tudo de forma tradicional, não lhe adicionamos leveduras, nem enzimas, nem taninos. Usamos zero quantidade de sulfuroso", garante o dirigente associativo e técnico de viticultura.

Apenas leveduras naturais, ou "indígenas", das uvas actuam, durante o processo de feitura da bebida. "Se, um dia, houver uma definição precisa do que é um vinho biológico, este será o que mais se lhe aproxima", afirma José Miguel, notando que as únicas substâncias adicionadas são o ácido tartárico, visando corrigir a acidez do vinho - caso contrário, o calor característico da região alentejana fá-la-ia c D cair irremediavelmente -, e o metabissulfito de potássio, com função antioxidante. Tirando isso, nada mais entra nas talhas. Como resultado dessa não utilização de correctivos, que na produção corrente visa garantir a homogeneização dos vinhos engarrafados, verifica-se uma grande heterogeneidade de estilo e de qualidade entre colheitas. Ao contrário do que sucede com a generalidade da produção colocada no mercado, não existe um vinho igual, de um ano para o outro.

A arte no barro
Ora, então, vamos lá explicar como é que as coisas se processam. Tudo muito frugal. As uvas são desengaçadas, isto é, separadas da parte lenhosa, e esmagadas, como sempre acontece. Colocadas nas talhas, nas quais acontecerá o processo fermentativo, medem-se a densidade do mosto e da sua temperatura, para assim saber o teor de açúcares. No período das 48 horas seguintes, inicia-se a fermentação do mosto - o qual é analisado para determinar o grau de acidez e a eventual necessidade de se lhe adicionar ácido tartárico. O vinho terá que ficar em contacto com as massas, até ao São Martinho. Mais ou menos, dois meses. Durante esse período, é necessário mexer diariamente as massas com um rodo de madeira - uma vara com uma "cabeça" -, mergulhando-as na parte líquida. Isto, a "molha da manta", é feito duas a três vezes, na fase mais tumultuosa da fermentação, que decorre nas primeiras duas a três semanas, e apenas uma, no restante período. No fim do processo, só existe vinho à superfície, com as massas no fundo.
Durante o período de feitura do vinho, através do seu contacto continuado com as massas, diz-se que ele está "na mãe". A camada de álcool e de dióxido de carbono que se vai acumulando na parte superior, associada ao próprio formato da talha, funciona como uma espécie de vedante natural, impedindo a oxidação. Dois meses após o começo da fermentação, retira-se o vinho pela torneira colocada no orifício existente na parte inferior da vasilha de barro, sendo de imediato colocado na parte superior da mesma. Chama-se a isto "passar o vinho", funcionando tal processo como uma filtragem natural do vinho através da parte sólida entretanto acumulada no terço inferior da talha. O objectivo é torná-lo o mais límpido possível. Estará assim pronto para consumir, sobretudo nos dois meses seguintes, pois trata-se de um produto de acentuada sazonalidade. Aliás, uma parte substancial da mais recente produção própria da Vitifrades (cerca de dois mil litros) será consumida durante as próximas Festas Báquicas.

Ainda assim, a associação lançará aproximadamente três mil garrafas de tinto, a partir das uvas Aragonez e Alicante Bouschet colhidas, na campanha deste ano, na vinha própria, que tem 0,8 hectares. Será a segunda safra do Vitifrades Amphora, "o único vinho de talha certificado em Portugal", já produzido na nova adega. O Amphora estreou-se, há poucos meses, com 900 garrafas de branco, feito a partir das castas Antão Vaz e Arinto resultantes da vindima de 2010. Existem outras produções de "vinho da talha" no Alentejo, mas não serão bem a mesma coisa do que aquela originária de Vila de Frades, alerta José Miguel Almeida. "Temos observado algumas tentativas por parte de grande produtores de, através do que escrevem no contra-rótulo das suas garrafas, sugerirem que utilizam as técnicas tradicionais do vinho da talha. Mas nós é que seguimos as regras", diz.



Bem hajam 
Carlos Fernandes